segunda-feira, 2 de abril de 2012

12 - Direito Medieval - Parte III: O processo inquisitorial

Em uma de nossas aulas anteriores vimos que foi durante o processo de centralização do poder nas mãos dos monarcas na Europa, no final da Idade Média, que surgiu o Tribunal da Santa Inquisição, também conhecido como Tribunal do Santo Ofício – o braço jurídico da Igreja Cristã Católica na Europa Ocidental.

A Santa Inquisição foi se estabelecendo em diversos pontos da Europa, amparada pelos senhores e reis católicos. A sua tarefa foi, principalmente, julgar os hereges – pessoas que interpretavam os ensinamentos cristãos de maneira diferente daquela que a Igreja pregava. Mas a Inquisição também julgava casos de adultério, incesto, bigamia, bruxaria, sacrilégio, usura e outros comportamentos considerados desviantes do ponto de vista da moral religiosa.

Essa intolerância da Igreja para com os elementos desviantes se explica, historicamente, pela crença arraigada de que a Cristandade era um corpo onde cada componente ou órgão tinha um papel definido por Deus. A sociedade devia seguir um modelo de conduta estabelecido pela Igreja: regras elaboradas a partir da interpretação das Sagradas Escrituras, que tinham como objetivo manter a sociedade dentro dos padrões que, segundo a Igreja, eram os exigidos por Deus. Ao que parece, a Inquisição, julgando e condenando os casos de desvio, visava alcançar a graça de Deus para toda a Cristandade.

A primeira etapa do processo inquisitorial era ouvir os boatos. As autoridades eclesiásticas estimulavam a delação, dizendo que Deus recompensaria aqueles que entregassem os hereges e outros desviantes ao inquisidor. Depois, os suspeitos eram interrogados. Havia um manual que orientava os interrogatórios e demais procedimentos inquisitoriais: era o Manual dos Inquisidores. Se o suspeito vacilasse em suas respostas, ele poderia ser torturado para que confessasse. A condenação poderia vir com confissão ou sem confissão. Às vezes as provas eram tão contundentes que já condenavam o réu sem confissão. Mas, sem dúvida, a confissão era a prova mais importante. Não havia advogado de defesa. Quem se defendia era o próprio acusado.

A pena máxima estabelecida pela Inquisição era a morte na fogueira. As penas mais leves iam desde penitências, atos de contrição, penas pecuniárias (em dinheiro), até os chamados “Autos de fé”, que eram procissões em que os condenados eram obrigados a participar, normalmente vestidos de branco, com velas acesas nas mãos, de forma que todos pudessem ver quem eles eram.

O sistema jurídico inquisitorial contribuiu para a racionalização do sistema penal no final da Idade Média e início dos tempos modernos. Só que foi uma racionalização em parte – a Igreja e seu braço jurídico, o Tribunal da Inquisição, não deixaram de acreditar em bruxas, em pacto demoníaco, nem na possibilidade de Deus punir os cristãos caso não houvesse um controle sobre o comportamento da sociedade, o que pode ser considerado irracional. Então, nesse aspecto, o sistema jurídico inquisitorial continuou irracional. Só que na forma de conduzir o processo, podemos afirmar com bastante segurança que ele contribuiu para a racionalização do sistema penal, na medida em que exigia uma investigação meticulosa, detalhista, depoimentos de testemunhas tomados com extremo rigor, e ainda estabeleceu um sistema de provas muito sofisticado para a época: o testemunho ocular de duas pessoas era uma prova plena e podia levar facilmente à condenação. Vários testemunhos indiretos podiam se tornar uma meia prova ou prova semi-plena. Duas provas semi-plenas podiam se tornar uma plena. Isso é muito racional. Porém, tratava-se de uma racionalidade sustentada sobre uma base irracional, que era a crença em bruxas, pacto demoníaco, etc.

O marco inicial de uma mudança de mentalidade que levou a um questionamento do sistema jurídico inquisitorial (como um todo, mas sobretudo da sua base irracional) foi o início do movimento humanista na virada do século XIV para o XV, mais especificamente na Itália. Ali, homens cultos, apaixonados pela Antiguidade Greco-Latina, começaram a estudar as obras dos autores gregos e romanos, que valorizavam o homem, a sua beleza, a sua inteligência e capacidade de dominar a natureza.

Aos poucos, esses humanistas conseguiram fazer emergir uma nova visão de mundo, em que o homem passou a ser o centro das atenções intelectuais. O conhecimento deixou de ser monopólio exclusivo da Igreja, e as atenções foram aos poucos se deslocando da relação Deus-Homem para a relação Homem-Natureza.

O Homem foi glorificado, e os humanistas, assim como os filósofos gregos no passado, começaram a contestar as explicações dadas pela religião (o Sagrado) para os fenômenos naturais, e mesmo sociais. Os humanistas adotaram uma visão antropocêntrica do mundo, em contraposição à visão teocêntrica da Igreja. O homem passou a ser o centro de todas as coisas.

Portanto, as explicações para os fenômenos da natureza e da sociedade encontravam-se no homem, no seu intelecto, na sua capacidade de pensar e refletir, na sua razão, que é humana, e não em Deus. Isso levou a uma redescoberta da razão e, consequentemente, a um avanço da ciência experimental.

Muitos humanistas começaram a contestar os dogmas da Igreja católica, mas a Igreja contra-atacou, renovando sua aliança com os reis católicos, que temiam se afastar da tutela da Igreja, e reforçando o papel do Tribunal da Inquisição, principalmente naqueles reinos onde o cristianismo havia se enraizado mais profundamente, como Portugal e Espanha.

Na Península Ibérica, o processo de centralização do poder se deu através de uma luta entre cristãos e muçulmanos (inimigos dos cristãos), que dominaram a península de 711 até 1492. A vitória cristã contra os inimigos da Cristandade nos territórios português e espanhol foi percebida pelos reis cristãos como uma graça divina, por isso o cristianismo se enraizou ali de forma mais profunda do que em outras regiões da Europa.

Nos séculos XVI e XVII (anos 1500 e 1600), a Igreja recuperou o seu domínio sobre a Cristandade. Foi o período em que mais se queimou hereges e bruxas na história da Inquisição. O moleiro Menochio (personagem do livro “O queijo e os vermes”, do historiador Carlo Ginzburg), por exemplo, foi queimado no final do século XVI, na Itália.

O caso de Menochio é interessante porque mostra um pouco da influência do humanismo entre o povo comum e, ao mesmo tempo, revela a fúria do Tribunal da Inquisição no seu contra-ataque a esse humanismo anti-católico na Europa do século XVI, já marcada pela Reforma Protestante.

Com relação ao primeiro aspecto (ou seja, o humanismo em Menochio), percebemos, ao acompanhar o processo inquisitorial que levou à sua condenação, que o conhecimento, o saber, já não era mais monopólio da Igreja nos anos 1500. Já havia imprensa, livros, e muitas pessoas fora da Igreja aprenderam a ler, entraram em contato com as idéias humanistas e começaram a contestar os dogmas da Igreja.

Uma dessas pessoas foi Menochio, que, inclusive, tinha muito orgulho do seu conhecimento, da sua bagagem de leitura e de suas idéias – que ele considerava originais – sobre as coisas da fé.

No primeiro interrogatório, por exemplo, quando Menochio explicou no Tribunal qual era a sua idéia sobre a origem de todas as coisas – a de que Deus e os anjos teriam surgido de uma matéria original, da mesma forma como do queijo surgiam os vermes –, o inquisidor responsável pelo interrogatório não acreditou no que estava ouvindo e perguntou se o interrogado estava falando sério ou brincando. Menochio respondeu que estava falando sério, dentro “da sua razão”. Ao saber o que o pai tinha afirmado na frente do inquisidor, o filho de Menochio espalhou pela cidade o boato de que o pai era “louco” ou estava “possesso”, mas o inquisidor não lhe deu atenção e o processo continuou.

Os tempos eram outros: a imprensa, a divulgação dos saberes profanos (não ligados à Igreja), tornaram possível a existência de um Menochio, uma pessoa simples, do povo, que sabia ler e que criticava abertamente as interpretações da Igreja.

As leituras de Menochio ajudam a entender as suas idéias. Por exemplo, ao ler o livro “As Viagens de Mandeville”, Menochio chegou à conclusão de que morto o corpo a alma também morria. Num dos primeiros interrogatórios, de frente para o inquisidor, Menochio disse que no livro “As Viagens de Mandeville”, o autor, que era navegador, descrevia várias culturas, várias religiões, dizendo que cada uma acreditava numa coisa diferente sobre a alma; disso ele (Menochio) concluiu que se cada religião pensava uma coisa diferente, era porque nenhuma delas era verdadeira, daí a sua conclusão de que a alma morria junto com o corpo. Ele dizia também que Deus não era um espírito ou uma energia superior; Deus, para ele, era tudo: a água, a terra, o fogo, o céu, as estrelas, as plantas, etc.

Depois, em um outro interrogatório, percebendo o perigo que corria (que não tinha ninguém ali admirando a sua perspicácia, a sua inteligência e o seu raciocínio brilhante) e que a fogueira já estava sendo preparada para ele, Menochio tentou enganar os inquisidores, mudando o seu discurso, mas não tinha mais jeito. Os inquisidores, treinados para confrontar as respostas anteriores com as novas (por isso a necessidade do registro escrito de todos os depoimentos) e pressionar o acusado de todas as formas, colocaram Menochio contra a parede, a ponto dele se desesperar.

Com relação à questão da alma, ele tentou se corrigir, dizendo o seguinte: “Morre o corpo, morre a alma, mas o espírito continua”. Ele estava, agora, tentando salvar a sua pele, por isso inventou essa história do espírito não ser a alma, do espírito ser uma coisa diferente da alma e que não morria com o corpo. Ele disse que o espírito vinha de Deus e era separado do homem; ele regia o homem, governava o homem, mas depois da morte, ele retornava à Majestade de Deus. E, na opinião dele, o homem tinha dentro de si, ao mesmo tempo, um espírito ruim e um espírito bom. A alma, ou melhor, as almas – porque ele achava que o homem possuía mais de uma alma – estavam ligadas ao cérebro, eram as operações da mente, e morriam com o corpo. Na opinião de Menochio, o homem tinha sete almas: o intelecto, a memória, a vontade, o pensamento, a crença, a fé e a esperança.

A situação dele piorou. Dois espíritos, sete almas e um corpo!? Os inquisidores ficaram perplexos, e por isso continuaram inquirindo, para ver até onde aquilo ia chegar.

Nesse mesmo interrogatório, os inquisidores questionaram sobre o que era a “majestade de Deus”. No processo, a pergunta aparece da seguinte forma: “O senhor disse que nossos espíritos retornam à majestade de Deus e já afirmou antes que Deus não é nada além de ar, terra, fogo e água: como então os espíritos retornam à majestade de Deus?”. Menochio não soube o que responder.

O sistema jurídico inquisitorial tinha esse objetivo: preparar armadilhas, colocar o acusado contra a parede. E, no caso de Menochio, isso foi fatal. Numa carta datada de 13 de novembro de 1593, endereçada ao Inquisidor-mor, responsável pelo processo de Menochio, o cardeal de Santa Severina, na Itália, disse o seguinte: “Que Vossa Reverendíssima não falte aos procedimentos no caso daquele camponês da diocese de Concordia, indiciado por ter negado a virgindade da beatíssima Virgem Maria, a divindade de Cristo, Nosso Senhor, e a providência de Deus, como já lhe escrevi por ordem expressa de Sua Santidade. A jurisdição do Santo Ofício em casos de tamanha importância não pode de modo algum ser posta em dúvida. Assim, execute implacavelmente tudo o que for necessário de acordo com os termos da lei”.

Como eu disse, a Igreja contra-atacou, utilizando-se do seu braço mais poderoso, a Inquisição; mas o movimento humanista estava fermentando, e já no século XVII, na França, o sistema jurídico inquisitorial começou a ser contestado de forma veemente.

No auge da Inquisição – séculos XVI, XVII e XVIII –, já existiam os estados monárquicos centralizados, e devido à forte influência da Igreja na política e nos direitos laicos – do estado –, podemos dizer que não havia uma separação clara entre Igreja e Estado.

Nessa época já havia um direito em cada estado, em cada reino, em cada território sob o domínio do monarca: direito complexo, escrito, codificado, fruto de um estudo aprofundado do direito romano justinianeu, que permitiu a elaboração dos diferentes sistemas jurídicos; mas o direito canônico também era muito respeitado, e certamente quanto mais católico fosse o rei, mais respeitado era o direito canônico naquele estado.

O Tribunal da Inquisição, por exemplo, teve muita liberdade nos reinos católicos e foi muito amparado pelos reis. Esse amparo foi tão grande que chegou um momento em que a Inquisição só determinava a pena ao herege ou à bruxa – quem executava a pena era o Estado, o rei.

Os tribunais criados pelos reis, teoricamente laicos, muitas vezes, também, para ajudar a Inquisição – que era um tribunal eclesiástico –, julgaram casos e aplicaram penas de acordo com o direito canônico, condenando crimes de heresia, bruxaria e outros.

Na França do século XVII a contestação a esse estado de coisas começou no Tribunal de Paris, que era um tribunal do estado, criado pelo rei, e que quebrou a univocidade com a Igreja, passando a não compartilhar mais a sua visão. O Tribunal de Paris e a Igreja passaram a não falar mais a mesma língua; os juristas de Paris começaram a questionar a influência do sistema jurídico inquisitorial (eclesiástico), sobre o sistema jurídico laico, secular, não religioso, partindo de uma crítica ao próprio sistema jurídico inquisitorial.

Por exemplo, os juristas, com base nas descobertas das ciências médicas, diziam que no sistema jurídico inquisitorial, os inquisidores estavam confundindo “melancolia” ou “velhice caduca” com bruxaria, com pacto demoníaco. Criticaram também o fato dos inquisidores levarem em conta os boatos para fundamentar a abertura de um processo.

Essas críticas levaram o rei da França, Luiz XIV, em 1682, a considerar a bruxaria uma superstição – mas manteve o sacrilégio ou profanação das coisas sagradas como um crime a ser punido com a morte.

Para os iluministas do século XVIII, que pregavam o humanismo penal, o racionalismo jurídico, era preciso que o Estado desprezasse o direito natural revelado por Deus, através das interpretações das Escrituras, realizadas pelos doutores da Igreja, ou seja: o direito canônico. Que a Igreja controlasse o seu clero, mas a sociedade civil, quem deveria controlar era o Estado, utilizando-se de um direito laico, criado pela razão, e não ditado por Deus.

Mas esta é uma outra história...

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