quarta-feira, 25 de abril de 2012

Dica de livro: "Subsistência e Poder"

Isto não é matéria de prova, mas para quem se interessar pela história do direito no Brasil Colonial (1500-1822), sobretudo na Capitania de Minas Gerais, no século XVIII (1701-1800), eu indico o meu livro "Subsistência e Poder", publicado em 2008 pela editora UFMG (resultado da minha tese de doutorado defendida em 2002). Ele está disponível para empréstimo na Biblioteca da FAPAM e na Biblioteca Pública Municipal de Pará de Minas.

Para ler uma resenha do livro, publicada na Revista Brasileira de História, CLIQUE AQUI

16 - O Direito no Brasil Colonial - Parte III: O Rei Absoluto: Governante, Juiz e Legislador



No sistema absolutista europeu dos séculos XVI, XVII e XVIII, acima de tudo estava o rei. Ele era a autoridade máxima. Acima de seus funcionários em questões administrativas, judiciárias e legislativas, estava ele, o grande governante, o grande juiz, o grande legislador. Lembre-se que o rei era absoluto. Nas suas mãos concentravam-se os três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Mas como o rei sozinho não conseguia resolver tudo diretamente, ele precisava de funcionários (que eram indicados por ele ou por pessoas de sua confiança).

No Brasil colonial (parte que era da Monarquia Absolutista Portuguesa) também foi assim. No início da nossa história administrativa (1530-1548), o capitão donatário tinha um poder muito grande sobre a sua capitania, mas acima dele havia dois documentos reais que, de certa forma, limitavam esse poder – a carta de doação e a carta de foral, que visavam, de forma geral, ao controle da sociedade que se desenvolvia na capitania.

Quando foi estabelecido o sistema das capitanias hereditárias, a legislação que vigorava em Portugal vinha das Ordenações Manuelinas (1521), que também passaram a vigorar no Brasil. Mas como não havia fiscalização direta da parte do rei, a lei que vigorava de fato era a lei do capitão donatário, muitas vezes contrária às cartas de doação e foral e às Ordenações.

Com o Governo Geral, a partir de 1548, a coisa começou a mudar. As decisões administrativas, legislativas e judiciárias foram aos poucos sendo centralizadas na sede desse governo, estabelecida em Salvador. Para governar o Brasil, administrar suas finanças, defendê-lo e aplicar a justiça do rei, o monarca indicou um governador geral, um provedor-mor (para questões de finanças), um capitão-mor (para questões militares, de defesa) e um ouvidor-mor (para julgar e aplicar a justiça), todos eles funcionários do estado.

O ouvidor-geral ou ouvidor-mor era a maior autoridade judiciária do Brasil (até a criação do primeiro Tribunal da Relação, em Salvador). Com o tempo, o rei indicou governadores, provedores, capitães e ouvidores para administrar as capitanias do Brasil (não mais hereditárias), só que estes, teoricamente, deviam obediência às autoridades gerais estabelecidas na sede do Governo Geral, Salvador.

Como muitos crimes e litígios mais graves tinham que ser transferidos para serem julgados em Salvador, em 1587 foi criado ali um “Tribunal da Relação”, um órgão coletivo, onde trabalhariam vários desembargadores. Desembargar é desembaraçar, desimpedir, despachar, dar uma sentença, resolver, e quem tinha poder para isso era o juiz desembargador. A antiga ouvidoria não era um órgão coletivo, pois ali só atuava o ouvidor. Com o tribunal, a justiça seria aplicada de forma mais rápida, com vários desembargadores atuando juntos. Só que o Tribunal da Relação de Salvador não foi implantado em 1587, por problemas administrativos, sendo efetivamente instalado só em 1609, quando já vigoravam as Ordenações filipinas.

O Tribunal da Relação era uma instância intermediária. Os casos que as ouvidorias das capitanias não podiam resolver, principalmente situações jurídicas ou crimes considerados graves, eram enviados para o Tribunal da Relação de Salvador. Se ali os desembargadores também não pudessem resolvê-los, eles os enviavam para o tribunal de última instância, localizado na sede da monarquia portuguesa, Lisboa. O principal tribunal de última instância era a Casa da Suplicação. Seus desembargadores estavam em contato direto com o rei, sempre. Na verdade, era o rei que presidia esse tribunal. 

Em 1751 foi criado um outro Tribunal da Relação no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Nessa época, já se extraía muito ouro na Capitania de Minas Gerais (a dinâmica econômica colonial se concentrava na região sudeste), o que transformou o Rio de Janeiro no principal porto de entrada de mercadorias importadas e de saída das frotas carregadas do ouro proveniente de Minas Gerais.

A região das Minas se desenvolveu muito. Vila Rica – hoje Ouro Preto – tornou-se um importante pólo econômico no interior do Brasil, surgindo ali uma civilização urbana extremamente complexa e conflituosa. Por isso foi criado o outro Tribunal da Relação, na cidade do Rio de Janeiro, para atender com mais prontidão à sociedade do Rio e, principalmente, às vilas do ouro da Capitania de Minas Gerais, onde a ouvidoria não dava conta de tantos processos.

Além das ouvidorias nas capitanias, dos tribunais em Salvador e no Rio e da Casa da Suplicação, havia também a justiça local, nas vilas. O arraial ganhava estatuto de vila quando o rei decidia implantar ali uma câmara. A câmara, no período colonial, era um órgão administrativo, legislativo e judiciário. Quem a presidia eram dois juizes, os juizes ordinários, eleitos pelos nobres da vila para um mandato de 1 ano. Eles eram os agentes executivos municipais e, ao mesmo tempo, autoridades judiciárias da localidade, autorizadas a julgar casos que não fossem da alçada do ouvidor da capitania. Os dois juizes se revezavam mensalmente no cargo, para poderem cuidar de seus negócios pessoais, pois não recebiam vencimento.

A câmara era formada pelos dois juizes ordinários e por vereadores, cujo número variava de 5 a 10. Os vereadores legislavam em nível local (produziam editais com normas para o controle da sociedade da vila), levavam casos menores para serem julgados pelos juizes ordinários e decidiam sobre medidas administrativas a serem executadas pelos juizes ordinários (verdadeiros prefeitos). Por exemplo, os vereadores legislavam sobre a pavimentação das ruas, sobre a organização do comércio local, sobre os horários de funcionamento das vendas – que eram verdadeiros antros de prostituição e bebedeira –, sobre a qualidade e o preço dos alimentos consumidos pela população, sobre impostos, etc. Os vereadores também não recebiam nada pelo seu serviço. O cargo era disputado pelo fato de ser símbolo de status, assim como o cargo de juiz ordinário.

Auxiliando os juizes ordinários e os vereadores, havia o juiz de vintena, o juiz de órfãos, o juiz de fora e o juiz almotacé.

O juiz de vintena era uma autoridade judiciária menor, escolhida pela câmara para presidir inquéritos de menor importância em áreas determinadas pelos juizes ordinários, geralmente povoados e pequenos arraiais mais afastados da vila.

O juiz de órfãos era também uma autoridade judiciária menor, só que escolhida não pela câmara, mas pelo rei, para cuidar dos órfãos e de sua herança.

O juiz de fora era uma autoridade judiciária itinerante, também escolhida pelo rei, para ajudar o juiz ordinário – na verdade, o que ele fazia era fiscalizar o trabalho da justiça local, sendo pessoa de fora e não enredada nas tramas de interesses locais.

O juiz almotacé era escolhido pela câmara e atuava na investigação e julgamento de crimes relacionados ao pequeno comércio. Por exemplo, era proibido vender cachaça nos morros onde havia escravos minerando em Minas Gerais, porque os escravos, além de utilizarem o ouro (que não lhes pertencia) na compra da bebida – a fiscalização era precária –, eles se embebedavam, “perdiam o juízo” – como diz um documento da época – e caíam nos buracos das minas, muitos morrendo, outros ficando aleijados, o que significava prejuízo para o seu senhor e para a atividade de extração aurífera. Quem julgava e atribuía penas para os casos de comércio ilegal era o juiz almotacé, que também fiscalizava os pesos e medidas, a qualidade e os preços dos alimentos consumidos pela população local, etc.

Acima de toda essa estrutura local havia a ouvidoria da capitania. Acima dessa ouvidoria havia, até 1609, a ouvidoria geral em Salvador e, depois, Tribunal da Relação de Salvador. Em 1751, como vimos, foi criado também um Tribunal da Relação no Rio de Janeiro. Acima dos Tribunais da Relação havia a Casa da Suplicação de Lisboa, ligada diretamente ao rei, transferida para o Brasil em 1808.

Só que acima de tudo isso havia o rei, autoridade máxima, legislador, executor e juiz absoluto. Ele controlava tudo – ou pelo menos tentava – através de dois documentos de grande poder: os alvarás, que continham disposições cujo efeito, em regra, não deveria durar mais de um ano; e as cartas-régias, que eram documentos com força de lei contendo medidas de caráter geral e quase sempre permanentes.

Para visualizar o esquema do Rei Absoluto, explicado em sala de aula, CLIQUE AQUI

sábado, 21 de abril de 2012

15 - O Direito no Brasil Colonial - Parte II: As Ordenações Portuguesas


O direito escrito português (do estado português) surgiu com as primeiras Leis Gerais publicadas no ano de 1210, que tiveram como objetivo principal a centralização do poder nas mãos do rei. Por serem "gerais", elas valiam para todo o território do reino de Portugal.
 
Com o tempo foram surgindo novas leis visando ao controle de uma realidade social cada vez mais complexa. A economia portuguesa, desde o início, esteve ligada ao comércio marítimo, e a riqueza produzida por esse comércio acabou contribuindo para o aumento populacional e, consequentemente, para uma maior complexidade da sociedade. (Lisboa se tornou, no final dos anos 1300, o porto mais movimentado da Europa e uma das cidades mais populosas do continente europeu).

Essa sociedade mais complexa exigia um número maior de novas leis, que tratassem de outros temas, de outras situações que antes não tinham sido previstas.

Em 1385, o rei Dom João I iniciou um trabalho de codificação das leis gerais, reunindo-as em um corpo legislativo único, formado por cinco livros. Esse trabalho só foi concluído em 1446, no reinado de Afonso V.

Portanto, a primeira grande codificação do direito português foram as chamadas Ordenações Afonsinas, resultado do trabalho iniciado em 1385 pelo rei Dom João I e concluído apenas no reinado do rei Afonso V (por isso Ordenações Afonsinas, em referência ao rei Afonso V).

As Ordenações Afonsinas constituíram o primeiro código legislativo do reino de Portugal. Era dividido em 5 livros, que tratavam da proteção dos bens da Coroa, da garantia às liberdades individuais, da proibição de abusos por parte de funcionários reais, entre outros temas.

É importante ressaltar que o direito romano foi a base das leis gerais e ordenações portuguesas, desde a Idade Média até os tempos modernos, e que muitas leis portuguesas foram simplesmente cópias adaptadas do direito romano.

Não podemos nos esquecer também da forte influência exercida em Portugal pelo direito canônico, que, muitas vezes, serviu de orientação aos juízes civis e ao próprio rei. (Lembre-se que não havia ainda uma distinção clara entre Religião/Igreja e Estado). 


As Ordenações Afonsinas vigoraram de 1446 até 1521, quando foram publicadas as Ordenações Manuelinas, no reinado de Dom Manuel I. De 1446 até 1521, prevaleceram as Ordenações Afonsinas, só que, nesse período, foi preciso publicar novas leis visando ao controle de uma sociedade que, a cada dia, tornava-se mais complexa. Essas leis publicadas fora do Código (ou complementando o Código) eram chamadas de Leis Extravagantes. (Extravagante é uma coisa fora do comum, singular. No caso da lei, uma lei fora do comum, fora do usual, que surge visando a solucionar um problema novo).

As Ordenações Manuelinas, de 1521, foram o resultado da reunião das Ordenações Afonsinas com as leis extravagantes publicadas de 1446 a 1521, é claro que com a  revogação de leis, adaptações, etc. (Nesse período de 1446 a 1521 foram publicadas leis extravagantes que tratavam do funcionamento e da estrutura dos tribunais seculares, criados pelo rei, e da atuação dos funcionários responsáveis pela aplicação das leis e pela administração da justiça. Essas e outras leis extravagantes passaram a fazer parte das Ordenações Manuelinas). 

De 1521 a 1603 aconteceu a mesma coisa. Novas leis extravagantes foram publicadas fora das Ordenações e que depois foram reunidas nas chamadas Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, durante o governo do rei Felipe.

As Ordenações filipinas foram o código legislativo português que vigorou no Brasil por mais tempo. Na verdade, as Ordenações filipinas eram as Ordenações Manuelinas (com alterações/atualizações) mais as leis extravagantes publicadas de 1521 até 1603. É um código extremamente complexo, porque a sociedade portuguesa assim exigia.

Em 1521, na época das Ordenações Manuelinas, Portugal não tinha ainda tomado posse do Brasil (foi o período da extração do pau-brasil). Em 1603, o Brasil já estava sendo colonizado e explorado pelos portugueses. Graças ao açúcar brasileiro, a economia portuguesa se desenvolveu muito: a população aumentou e as cidades cresceram, exigindo um código legislativo maior e mais sofisticado.

As Ordenações filipinas, bem como os outros códigos anteriores, compõem-se de cinco livros. O primeiro trata do direito administrativo e da organização judiciária, versando sobre as atribuições, direitos e deveres dos magistrados, oficiais de justiça e funcionários em geral. O segundo trata do direito do clero, do rei, da nobreza e dos estrangeiros, definindo os privilégios, direitos e deveres de cada um e regulamentando as relações entre o Estado e a Igreja. O terceiro trata do processo civil, ou seja, dos procedimentos judiciais relativos a situações de natureza privada (relações privadas), como casamento, patrimônio, sucessão, doações, contratos, etc. O quarto trata do direito civil e do direito comercial, apresentando as leis que compõem esses direitos. O último livro é dedicado ao direito penal.

No link a seguir você terá acesso a um texto que, apesar de alguns pequenos erros de digitação, é muito bom para se entender esse capítulo da história do direito português:


História do Direito Português no período das Ordenações Reais 


Se preferir baixar o arquivo em pdf, CLIQUE AQUI

quarta-feira, 18 de abril de 2012

14 - O Direito no Brasil Colonial - Parte I: O Brasil português (1500-1822)

Quando ocorreu a centralização do poder nas mãos dos reis, na Europa, os impostos de cada antigo feudo passaram a se concentrar na Fazenda Real ou Erário Régio, uma instituição estatal. Com esses recursos, os reis começaram a financiar a atividade comercial da burguesia no continente europeu e, depois, no ultramar.

As grandes expedições ultramarinas, como as de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, só foram possíveis porque as monarquias espanhola e portuguesa investiram dinheiro no treinamento de marinheiros, na construção de caravelas e naus bem equipadas, no desenvolvimento de instrumentos técnicos para a navegação, etc. Foi uma empresa caríssima, que só foi possível graças à montagem de uma estrutura centralizada de arrecadação de impostos em ambos os estados.

Quando Pedro Álvares Cabral partiu de Lisboa em 1500, o seu objetivo era atingir as Índias, região do Oriente onde eram produzidas as “especiarias” (gengibre, pimenta, canela, cravo, nós-moscada, etc.), que os portugueses trocavam por outras mercadorias e revendiam na Europa, obtendo lucros vultosos.

É importante lembrar que havia uma rota antiga para as Índias, que era utilizada principalmente pelos genoveses e venezianos. Essa rota passava pelo mar Mediterrâneo, indo até o Oriente Próximo, onde todas as mercadorias tinham que ser descarregadas, e se percorria o resto do caminho de camelo, mula ou mesmo a pé. Era uma rota difícil, dispendiosa e perigosa, e quando os turcos otomanos (já convertidos ao islamismo) tomaram o Mediterrâneo em 1453, as dificuldades para percorrê-la aumentaram ainda mais.

O português Bartolomeu Dias encontrou um novo caminho para as Índias em 1488. Seguindo esse caminho, Vasco da Gama, em 1495/1496, cruzou o Cabo da Boa Esperança (no sul da África) e chegou a Calicute, que era a cidade comercial mais importante das Índias, estabelecendo ali relações comerciais com os indianos. Vasco da Gama voltou a Lisboa em 1499, trazendo muita mercadoria: gengibre, pimenta, cravo, canela e outras especiarias. Foi recebido como herói pelo rei e pela população.

Em vista disso, o rei D. Manuel organizou uma nova expedição às Índias, chamando para ser seu capitão Pedro Álvares Cabral. Cabral tinha na época 32 anos e era um ótimo estrategista militar. Parece que o objetivo, dessa vez, não era só estabelecer relações comerciais com os indianos, mas também analisar as possibilidades de uma intervenção militar portuguesa nas Índias, ou seja, Cabral teria que, como se não quisesse nada, avaliar os riscos e estabelecer estratégias para uma provável futura invasão portuguesa de Calicute e de outros pontos estratégicos daquela região.

Pedro Álvares Cabral partiu com sua frota rumo às Índias. De acordo com o relato do escrivão Pero Vaz de Caminha, que estava na frota, na altura das ilhas Canárias um dos navios se perdeu. Cabral começou então a procurá-lo, desviando-se da rota, o que o levou ao Brasil.

A pergunta que os historiadores se colocam é a seguinte: será que esse afastamento foi só mesmo para tentar encontrar o navio que se perdeu ou foi porque Cabral sabia, ou pelo menos tinha uma idéia, de que ele encontraria alguma coisa ali? No norte, o navegador Cristóvão Colombo havia encontrado um novo território, e os portugueses sabiam disso...

Para quem não conhece a história de Colombo, ele era um navegador experiente de origem italiana – era genovês – que tentou vender uma idéia para os portugueses: a de que se eles navegassem rumo a Oeste, dariam a volta ao mundo e chegariam às Índias, porque a terra era redonda. Os portugueses, céticos, não acreditaram e resolveram investir mesmo na “Carreira da Índia” passando pelo Cabo da Boa Esperança. Colombo então foi vender a sua idéia aos reis de Castela, que acreditaram nele e financiaram a sua viagem. Colombo "descobriu" a América em 1492, só que morreu achando que tinha chegado às Índias.

No período em que Portugal não sabia ainda o que fazer com o Brasil, a única atividade econômica que os portugueses estabeleceram ali foi a extração do pau-brasil, que era uma madeira que produzia uma tintura “cor de brasa” (vermelha), de alto valor comercial na Europa, utilizada principalmente nas manufaturas de tecidos.

Por volta de 1530, o comércio com as Índias já não era tão vantajoso aos portugueses devido à concorrência com outras potências marítimas.

Os lucros obtidos por Portugal com o comércio oriental estavam diminuindo, o que, aliado à ameaça de invasão estrangeira do Brasil, fez com que o rei de Portugal decidisse colonizar o território de fato, ou seja, explorar, povoar e defender, dando um rumo econômico diferente (e mais lucrativo) para a nova colônia.

Em 1530, o rei de Portugal, D. João III, enviou ao Brasil uma expedição comandada por Martim Afonso de Sousa, que teve como objetivo percorrer a costa brasileira, reconhecendo o litoral, e dar início ao estabelecimento de um sistema administrativo que permitisse a colonização do Brasil, sistema este que ficou conhecido como "Capitanias Hereditárias". O Brasil foi dividido em 15 capitanias.

Mas o que era uma capitania hereditária? Naquela época, capitania era uma divisão territorial e política dentro de uma colônia. Era um espaço territorial delimitado que pressupunha, também, dentro de seus limites, a presença de uma autoridade administrativa. As capitanias hereditárias foram a primeira experiência de descentralização política no Brasil. Por quê? Porque cada capitania era governada por uma autoridade, o capitão donatário, escolhido pelo rei de Portugal. Não havia centralização do poder nas mãos de uma única autoridade no Brasil, mas várias autoridades, vários capitães donatários governando em territórios delimitados – por isso descentralização do poder –, uma forma de organização política muito parecida com a do sistema feudal.

A missão do capitão donatário era povoar o território da sua capitania, fazê-lo dar lucro e defendê-lo de invasores estrangeiros.

Embora o rei de Portugal estivesse acima do capitão, este não era funcionário do rei, não representava o estado, era apenas um nobre interessado em ficar rico no Brasil.

O capitão donatário tinha poderes quase absolutos sobre quem vivia na sua capitania: ele tinha poder para criar vilas, administrar a justiça e questões relativas à produção econômica; podia mandar prender, matar... Só não podia fazer tudo porque havia um documento que, de certa forma, limitava um pouco (mas muito pouco mesmo) o seu poder: a Carta de doação e Foral, que estabelecia os direitos, algumas leis, os tributos a serem pagos ao rei e ao próprio capitão, entre outras coisas. Fora isso, o poder do capitão sobre a sua capitania era imenso, quase absoluto.

O problema foi que apenas duas capitanias prosperaram: a de Pernambuco, no Nordeste, e a de São Vicente, no Sudeste. Em vista disso, em 1548 o sistema de capitanias hereditárias foi extinto e o rei de Portugal decidiu colocar no seu lugar um sistema administrativo centralizado: o Governo Geral.

A Capitania de Pernambuco deu certo porque conseguiu dar início à cultura da cana e à produção de açúcar de forma relativamente organizada. Conseguiu também defender e povoar o território.

Já a Capitania de São Vicente deu certo não por ter iniciado uma atividade econômica que se mostrasse lucrativa, porque nesse ponto o seu capitão donatário não foi muito bem sucedido – embora tenha havido ali um certo desenvolvimento da cultura canavieira –, mas ele conseguiu povoar a região de forma satisfatória e montou ali um sistema de defesa eficaz que, na opinião do rei de Portugal, deveria ser mantido para defender aquelas terras mais ao sul contra uma possível invasão estrangeira.

Temos então duas capitanias que deram certo e um Governo Geral – instituído em 1548 –, na Capitania da Bahia (por ter sido o primeiro ponto de ocupação do território brasileiro), com sede em Salvador (cidade criada em 1548 justamente para ser a sede do Governo Geral do Brasil).

O primeiro Governador Geral do Brasil foi Tomé de Souza, que veio acompanhado de outros funcionários (pagos pelo estado português) para auxiliá-lo na sua tarefa administrativa centralizadora: o provedor-mor, responsável por assuntos de finanças, ligados à fazenda (impostos, sobretudo); o capitão-mor, responsável pela defesa da colônia; e o ouvidor-mor, responsável pela aplicação da justiça do rei.

Tomé de Souza foi Governador Geral do Brasil de 1549 até 1553, e foi a partir do seu governo que se desenvolveu a indústria açucareira no Brasil.

Por que o açúcar? Primeiro porque os portugueses não tinham conseguido encontrar ouro e prata naquele momento inicial da colonização e precisavam de uma atividade econômica que fornecesse mais riqueza ao estado português do que a simples extração de pau-brasil (o açúcar era uma especiaria na Europa). Depois, porque eles já dominavam as técnicas de produção de açúcar, que eram já empregadas em outras possessões portuguesas, como na ilha da Madeira e nos Açores.

Só que eles precisariam de uma mão-de-obra adequada, porque o índio, na visão dos portugueses, não era bom escravo.

Foi aí que teve início o tráfico negreiro para o Brasil.

A África, na época dos descobrimentos, era formada por várias tribos (nações) diferentes de africanos. Os portugueses, já no início do século XV (anos 1400), começaram a estabelecer contato com essas tribos africanas e logo perceberam que a escravidão era uma instituição naturalmente aceita entre elas. Os portugueses, logicamente, tiraram proveito disso, comprando escravos dos próprios africanos.

O que acontecia era que essas tribos entravam em guerra umas com as outras e as tribos vencedoras escravizavam os prisioneiros das perdedoras. Esses prisioneiros eram, então, trocados no litoral por mercadorias que os portugueses traziam: armas, tecidos, rolos de tabaco, vinho, aguardente, roupas usadas, chapéus, etc.

Logo que desembarcavam no litoral brasileiro, os escravos eram reunidos num armazém e depois separados em lotes para serem vendidos.

Foi assim, então, que se introduziu no Brasil o sistema escravista, como um acessório da economia açucareira.

No final do século XVII, diante da crise dos engenhos de açúcar no nordeste brasileiro, os portugueses começaram a investir na produção manufatureira em Portugal (de tecidos, sapatos, roupas, etc.), para ver se com isso a economia portuguesa se reerguia. Só que essa iniciativa acabou não dando certo e foi abandonada.

Enquanto isso, no Brasil, os paulistas, colonos da capitania de São Vicente, davam início às suas expedições pelo interior do Brasil. Encontraram muito ouro na região que, mais tarde, foi chamada de Minas Gerais, no final do século XVII, entre 1693 e 1695; depois, em Mato Grosso (1719) e, mais tarde, em Goiás (1726). A capitania de Minas Gerais foi criada em 1720.

O rei de Portugal viu aí a chance de resolver todos os problemas econômicos de Portugal e mandou logo promulgar, em 1702, o Regimento dos Superintendentes, Guardas-mores e Oficiais Deputados para as Minas de Ouro (instrumento de centralização e controle). Esse regimento se manteria até o término do período colonial, apenas com algumas modificações.

Vamos agora dar um salto para o ano de 1820. Nessa época, a elite brasileira era formada por grandes proprietários rurais, em particular os de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Contava com a simpatia de altos funcionários, militares e também comerciantes brasileiros e estrangeiros, que queriam que o Brasil fosse livre para comerciar com a Inglaterra e outros países, sem depender da intermediação portuguesa, que era prejudicial aos seus interesses. Essa elite tinha consciência da precária situação de Portugal (devido à crise do ouro e ao seu enfraquecimento político após a fuga da família real para o Brasil, em 1808) e não queria depender de um país em decadência. Queria, na verdade, um Brasil independente, livre para vender seus produtos – principalmente o café – a qualquer país que pudesse pagar por eles.

Já a elite portuguesa (no Brasil e em Portugal), formada principalmente por comerciantes portugueses, queria um Brasil colonial, submetido a Portugal e aos interesses de sua burguesia.

Em resumo, a elite brasileira queria o liberalismo econômico, a livre concorrência, e a elite portuguesa queria a volta do monopólio comercial português (abolido pelo Príncipe D. João em 1808, quando veio para o Brasil), porque só assim ela teria condições de crescer economicamente.

Mas no fundo, podemos afirmar, o que a elite brasileira queria mesmo era poder. Ela queria participar das tomadas de decisões, governar o Brasil de fato, para poder conduzir a política a seu favor, a favor do Brasil cafeeiro, agro-exportador. Ela não queria o retorno do regente D. Pedro (filho do agora rei D. João VI) para Portugal, porque via nele a possibilidade do Brasil se tornar uma nação independente e liberal, não só economicamente – como já estava sendo, desde a abertura dos portos em 1808 –, mas também politicamente.

Foi com esse objetivo que a elite brasileira apoiou a resistência de D. Pedro em voltar para Portugal e, depois, em 1822, o movimento de Independência.

Em 7 de setembro de 1822, D. Pedro declarou a independência do Brasil e passou a ser o seu imperador (rei).

Tem início aí o Brasil Império (1822-1889)

Para visualizar os slides da aula, CLIQUE AQUI

Para assistir a uma aula complementar de 28 minutos (com vários temas não tratados em nossa aula), ministrada por um dos mais importantes historiadores brasileiros da atualidade, CLIQUE AQUI

terça-feira, 17 de abril de 2012

Indicação de leitura

Para as próximas unidades - O Brasil português (1500-1822) e O Direito no Brasil Colonial -, indico a leitura do artigo "O Direito no Brasil Colonial", de Cláudio Valentim Cristiani. Esse artigo (de 18 páginas) é um dos capítulos do livro "Fundamentos de História do Direito", organizado por Antonio Carlos Wolkmer (disponível na Biblioteca da FAPAM). Na edição que eu tenho em mãos (que é a 2ª), o texto indicado corresponde ao capítulo 12.

13 - A formação de Portugal e Espanha

Para visualizar os slides da aula, CLIQUE AQUI

Para assistir a um vídeo (de 6 minutos) sobre a Língua Portuguesa (narrado em português de Portugal), CLIQUE AQUI

Dica de livro: "Uma certa justiça"

Isto aqui não é matéria de prova, é só a dica de um livro muito bom que eu li e que pode ser interessante para vocês. É um romance policial inglês muito bem escrito, cheio de suspense e mistério: Uma certa justiça (1997), de P. D. James.

A seguir, eu reproduzo um resumo da obra (tirado da orelha do livro) e, logo em seguida, disponibilizo um link para quem quiser acessar o primeiro capítulo, que descreve uma cena de tribunal de tirar o chapéu. Excelente!

Resumo da obra:

"Presunção de inocência" significa que não se pode condenar um suspeito se não existem provas conclusivas de que ele tenha cometido o crime. Este é um dos princípios básicos do sistema judiciário ocidental. E foi contestando a validade dos argumentos e evidências da promotoria que a advogada Venetia Aldridge baseou sua defesa do jovem Garry Ashe, acusado de matar a tia com requintes de crueldade.


Para Venetia, uma das mais renomadas e competentes criminalistas da Inglaterra, este não passava de mais um caso na extraordinária carreira que a levara a exercer sua profissão no tribunal mais prestigioso do país, o Old Bailey - mais uma oportunidade de demonstrar sua perspicácia e sua incontida ambição de vencer seus adversários.

Duas semanas após o fim do julgamento, contudo, Venetia foi encontrada morta em seu escritório, para escândalo e horror dos colegas. Tão improvável e chocante foi esse assassinato que sua solução só poderia ser confiada à famosa equipe da Nova Scotland Yard chefiada pelo inspetor e poeta Adam Dalgliesh.

Pela primeira vez situando sua história no próprio centro do sistema judiciário britânico, um dos mais antigos do mundo e com tradições que remontam à Idade Média, P. D. James consegue, em "Uma certa justiça", renovar outra vez de modo surpreendente o esquema clássico do romance policial inglês. Não só explora as minúcias dos procedimentos jurídicos e policiais, como faz um retrato dickensiano da sociedade inglesa, com suas divisões de classe e marcadas peculiaridades, além de discutir questões fundamentais como a ética dos advogados e as limitações do sistema judicial. Tudo isso para não falar, é claro, de seu esplêndido domínio da linguagem, da refinada técnica com que controla a narrativa e o suspense, e da complexidade psicológica que infunde aos personagens, aspectos que a colocam entre os melhores praticantes do gênero e - por que não? - entre aqueles poucos autores capazes de produzir literatura digna desse nome.

Para ler o primeiro capítulo de Uma certa justiça, CLIQUE AQUI

P. D. James, Uma certa justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 1999

terça-feira, 10 de abril de 2012

Dica de filme: "Rei Arthur"

Neste filme de 2004, o contexto é a Grã-Bretanha no período final da presença romana (anos 400-500 d.C.), quando os saxões já avançavam com violência sobre o território, lutando contra romanos e bretões (celtas).

Segundo esta versão cinematográfica da lenda, antes de se tornar rei dos bretões, Arthur foi um guerreiro romano-bretão, que lutou por Roma e, principalmente, pelos bretões, defendendo suas terras dos invasores.

Sinopse:

No filme, que mistura evidências históricas com elementos das lendas arturianas, Arthur e seus Cavaleiros (provenientes de tribos conquistadas pelo Império Romano) enfrentam os saxões, que invadem a Grã-Bretanha quando o império em decadência está se retirando, deixando os habitantes da ilha à mercê dos invasores.


Para assistir ao trailer original do filme, CLIQUE AQUI

segunda-feira, 2 de abril de 2012

12 - Direito Medieval - Parte III: O processo inquisitorial

Em uma de nossas aulas anteriores vimos que foi durante o processo de centralização do poder nas mãos dos monarcas na Europa, no final da Idade Média, que surgiu o Tribunal da Santa Inquisição, também conhecido como Tribunal do Santo Ofício – o braço jurídico da Igreja Cristã Católica na Europa Ocidental.

A Santa Inquisição foi se estabelecendo em diversos pontos da Europa, amparada pelos senhores e reis católicos. A sua tarefa foi, principalmente, julgar os hereges – pessoas que interpretavam os ensinamentos cristãos de maneira diferente daquela que a Igreja pregava. Mas a Inquisição também julgava casos de adultério, incesto, bigamia, bruxaria, sacrilégio, usura e outros comportamentos considerados desviantes do ponto de vista da moral religiosa.

Essa intolerância da Igreja para com os elementos desviantes se explica, historicamente, pela crença arraigada de que a Cristandade era um corpo onde cada componente ou órgão tinha um papel definido por Deus. A sociedade devia seguir um modelo de conduta estabelecido pela Igreja: regras elaboradas a partir da interpretação das Sagradas Escrituras, que tinham como objetivo manter a sociedade dentro dos padrões que, segundo a Igreja, eram os exigidos por Deus. Ao que parece, a Inquisição, julgando e condenando os casos de desvio, visava alcançar a graça de Deus para toda a Cristandade.

A primeira etapa do processo inquisitorial era ouvir os boatos. As autoridades eclesiásticas estimulavam a delação, dizendo que Deus recompensaria aqueles que entregassem os hereges e outros desviantes ao inquisidor. Depois, os suspeitos eram interrogados. Havia um manual que orientava os interrogatórios e demais procedimentos inquisitoriais: era o Manual dos Inquisidores. Se o suspeito vacilasse em suas respostas, ele poderia ser torturado para que confessasse. A condenação poderia vir com confissão ou sem confissão. Às vezes as provas eram tão contundentes que já condenavam o réu sem confissão. Mas, sem dúvida, a confissão era a prova mais importante. Não havia advogado de defesa. Quem se defendia era o próprio acusado.

A pena máxima estabelecida pela Inquisição era a morte na fogueira. As penas mais leves iam desde penitências, atos de contrição, penas pecuniárias (em dinheiro), até os chamados “Autos de fé”, que eram procissões em que os condenados eram obrigados a participar, normalmente vestidos de branco, com velas acesas nas mãos, de forma que todos pudessem ver quem eles eram.

O sistema jurídico inquisitorial contribuiu para a racionalização do sistema penal no final da Idade Média e início dos tempos modernos. Só que foi uma racionalização em parte – a Igreja e seu braço jurídico, o Tribunal da Inquisição, não deixaram de acreditar em bruxas, em pacto demoníaco, nem na possibilidade de Deus punir os cristãos caso não houvesse um controle sobre o comportamento da sociedade, o que pode ser considerado irracional. Então, nesse aspecto, o sistema jurídico inquisitorial continuou irracional. Só que na forma de conduzir o processo, podemos afirmar com bastante segurança que ele contribuiu para a racionalização do sistema penal, na medida em que exigia uma investigação meticulosa, detalhista, depoimentos de testemunhas tomados com extremo rigor, e ainda estabeleceu um sistema de provas muito sofisticado para a época: o testemunho ocular de duas pessoas era uma prova plena e podia levar facilmente à condenação. Vários testemunhos indiretos podiam se tornar uma meia prova ou prova semi-plena. Duas provas semi-plenas podiam se tornar uma plena. Isso é muito racional. Porém, tratava-se de uma racionalidade sustentada sobre uma base irracional, que era a crença em bruxas, pacto demoníaco, etc.

O marco inicial de uma mudança de mentalidade que levou a um questionamento do sistema jurídico inquisitorial (como um todo, mas sobretudo da sua base irracional) foi o início do movimento humanista na virada do século XIV para o XV, mais especificamente na Itália. Ali, homens cultos, apaixonados pela Antiguidade Greco-Latina, começaram a estudar as obras dos autores gregos e romanos, que valorizavam o homem, a sua beleza, a sua inteligência e capacidade de dominar a natureza.

Aos poucos, esses humanistas conseguiram fazer emergir uma nova visão de mundo, em que o homem passou a ser o centro das atenções intelectuais. O conhecimento deixou de ser monopólio exclusivo da Igreja, e as atenções foram aos poucos se deslocando da relação Deus-Homem para a relação Homem-Natureza.

O Homem foi glorificado, e os humanistas, assim como os filósofos gregos no passado, começaram a contestar as explicações dadas pela religião (o Sagrado) para os fenômenos naturais, e mesmo sociais. Os humanistas adotaram uma visão antropocêntrica do mundo, em contraposição à visão teocêntrica da Igreja. O homem passou a ser o centro de todas as coisas.

Portanto, as explicações para os fenômenos da natureza e da sociedade encontravam-se no homem, no seu intelecto, na sua capacidade de pensar e refletir, na sua razão, que é humana, e não em Deus. Isso levou a uma redescoberta da razão e, consequentemente, a um avanço da ciência experimental.

Muitos humanistas começaram a contestar os dogmas da Igreja católica, mas a Igreja contra-atacou, renovando sua aliança com os reis católicos, que temiam se afastar da tutela da Igreja, e reforçando o papel do Tribunal da Inquisição, principalmente naqueles reinos onde o cristianismo havia se enraizado mais profundamente, como Portugal e Espanha.

Na Península Ibérica, o processo de centralização do poder se deu através de uma luta entre cristãos e muçulmanos (inimigos dos cristãos), que dominaram a península de 711 até 1492. A vitória cristã contra os inimigos da Cristandade nos territórios português e espanhol foi percebida pelos reis cristãos como uma graça divina, por isso o cristianismo se enraizou ali de forma mais profunda do que em outras regiões da Europa.

Nos séculos XVI e XVII (anos 1500 e 1600), a Igreja recuperou o seu domínio sobre a Cristandade. Foi o período em que mais se queimou hereges e bruxas na história da Inquisição. O moleiro Menochio (personagem do livro “O queijo e os vermes”, do historiador Carlo Ginzburg), por exemplo, foi queimado no final do século XVI, na Itália.

O caso de Menochio é interessante porque mostra um pouco da influência do humanismo entre o povo comum e, ao mesmo tempo, revela a fúria do Tribunal da Inquisição no seu contra-ataque a esse humanismo anti-católico na Europa do século XVI, já marcada pela Reforma Protestante.

Com relação ao primeiro aspecto (ou seja, o humanismo em Menochio), percebemos, ao acompanhar o processo inquisitorial que levou à sua condenação, que o conhecimento, o saber, já não era mais monopólio da Igreja nos anos 1500. Já havia imprensa, livros, e muitas pessoas fora da Igreja aprenderam a ler, entraram em contato com as idéias humanistas e começaram a contestar os dogmas da Igreja.

Uma dessas pessoas foi Menochio, que, inclusive, tinha muito orgulho do seu conhecimento, da sua bagagem de leitura e de suas idéias – que ele considerava originais – sobre as coisas da fé.

No primeiro interrogatório, por exemplo, quando Menochio explicou no Tribunal qual era a sua idéia sobre a origem de todas as coisas – a de que Deus e os anjos teriam surgido de uma matéria original, da mesma forma como do queijo surgiam os vermes –, o inquisidor responsável pelo interrogatório não acreditou no que estava ouvindo e perguntou se o interrogado estava falando sério ou brincando. Menochio respondeu que estava falando sério, dentro “da sua razão”. Ao saber o que o pai tinha afirmado na frente do inquisidor, o filho de Menochio espalhou pela cidade o boato de que o pai era “louco” ou estava “possesso”, mas o inquisidor não lhe deu atenção e o processo continuou.

Os tempos eram outros: a imprensa, a divulgação dos saberes profanos (não ligados à Igreja), tornaram possível a existência de um Menochio, uma pessoa simples, do povo, que sabia ler e que criticava abertamente as interpretações da Igreja.

As leituras de Menochio ajudam a entender as suas idéias. Por exemplo, ao ler o livro “As Viagens de Mandeville”, Menochio chegou à conclusão de que morto o corpo a alma também morria. Num dos primeiros interrogatórios, de frente para o inquisidor, Menochio disse que no livro “As Viagens de Mandeville”, o autor, que era navegador, descrevia várias culturas, várias religiões, dizendo que cada uma acreditava numa coisa diferente sobre a alma; disso ele (Menochio) concluiu que se cada religião pensava uma coisa diferente, era porque nenhuma delas era verdadeira, daí a sua conclusão de que a alma morria junto com o corpo. Ele dizia também que Deus não era um espírito ou uma energia superior; Deus, para ele, era tudo: a água, a terra, o fogo, o céu, as estrelas, as plantas, etc.

Depois, em um outro interrogatório, percebendo o perigo que corria (que não tinha ninguém ali admirando a sua perspicácia, a sua inteligência e o seu raciocínio brilhante) e que a fogueira já estava sendo preparada para ele, Menochio tentou enganar os inquisidores, mudando o seu discurso, mas não tinha mais jeito. Os inquisidores, treinados para confrontar as respostas anteriores com as novas (por isso a necessidade do registro escrito de todos os depoimentos) e pressionar o acusado de todas as formas, colocaram Menochio contra a parede, a ponto dele se desesperar.

Com relação à questão da alma, ele tentou se corrigir, dizendo o seguinte: “Morre o corpo, morre a alma, mas o espírito continua”. Ele estava, agora, tentando salvar a sua pele, por isso inventou essa história do espírito não ser a alma, do espírito ser uma coisa diferente da alma e que não morria com o corpo. Ele disse que o espírito vinha de Deus e era separado do homem; ele regia o homem, governava o homem, mas depois da morte, ele retornava à Majestade de Deus. E, na opinião dele, o homem tinha dentro de si, ao mesmo tempo, um espírito ruim e um espírito bom. A alma, ou melhor, as almas – porque ele achava que o homem possuía mais de uma alma – estavam ligadas ao cérebro, eram as operações da mente, e morriam com o corpo. Na opinião de Menochio, o homem tinha sete almas: o intelecto, a memória, a vontade, o pensamento, a crença, a fé e a esperança.

A situação dele piorou. Dois espíritos, sete almas e um corpo!? Os inquisidores ficaram perplexos, e por isso continuaram inquirindo, para ver até onde aquilo ia chegar.

Nesse mesmo interrogatório, os inquisidores questionaram sobre o que era a “majestade de Deus”. No processo, a pergunta aparece da seguinte forma: “O senhor disse que nossos espíritos retornam à majestade de Deus e já afirmou antes que Deus não é nada além de ar, terra, fogo e água: como então os espíritos retornam à majestade de Deus?”. Menochio não soube o que responder.

O sistema jurídico inquisitorial tinha esse objetivo: preparar armadilhas, colocar o acusado contra a parede. E, no caso de Menochio, isso foi fatal. Numa carta datada de 13 de novembro de 1593, endereçada ao Inquisidor-mor, responsável pelo processo de Menochio, o cardeal de Santa Severina, na Itália, disse o seguinte: “Que Vossa Reverendíssima não falte aos procedimentos no caso daquele camponês da diocese de Concordia, indiciado por ter negado a virgindade da beatíssima Virgem Maria, a divindade de Cristo, Nosso Senhor, e a providência de Deus, como já lhe escrevi por ordem expressa de Sua Santidade. A jurisdição do Santo Ofício em casos de tamanha importância não pode de modo algum ser posta em dúvida. Assim, execute implacavelmente tudo o que for necessário de acordo com os termos da lei”.

Como eu disse, a Igreja contra-atacou, utilizando-se do seu braço mais poderoso, a Inquisição; mas o movimento humanista estava fermentando, e já no século XVII, na França, o sistema jurídico inquisitorial começou a ser contestado de forma veemente.

No auge da Inquisição – séculos XVI, XVII e XVIII –, já existiam os estados monárquicos centralizados, e devido à forte influência da Igreja na política e nos direitos laicos – do estado –, podemos dizer que não havia uma separação clara entre Igreja e Estado.

Nessa época já havia um direito em cada estado, em cada reino, em cada território sob o domínio do monarca: direito complexo, escrito, codificado, fruto de um estudo aprofundado do direito romano justinianeu, que permitiu a elaboração dos diferentes sistemas jurídicos; mas o direito canônico também era muito respeitado, e certamente quanto mais católico fosse o rei, mais respeitado era o direito canônico naquele estado.

O Tribunal da Inquisição, por exemplo, teve muita liberdade nos reinos católicos e foi muito amparado pelos reis. Esse amparo foi tão grande que chegou um momento em que a Inquisição só determinava a pena ao herege ou à bruxa – quem executava a pena era o Estado, o rei.

Os tribunais criados pelos reis, teoricamente laicos, muitas vezes, também, para ajudar a Inquisição – que era um tribunal eclesiástico –, julgaram casos e aplicaram penas de acordo com o direito canônico, condenando crimes de heresia, bruxaria e outros.

Na França do século XVII a contestação a esse estado de coisas começou no Tribunal de Paris, que era um tribunal do estado, criado pelo rei, e que quebrou a univocidade com a Igreja, passando a não compartilhar mais a sua visão. O Tribunal de Paris e a Igreja passaram a não falar mais a mesma língua; os juristas de Paris começaram a questionar a influência do sistema jurídico inquisitorial (eclesiástico), sobre o sistema jurídico laico, secular, não religioso, partindo de uma crítica ao próprio sistema jurídico inquisitorial.

Por exemplo, os juristas, com base nas descobertas das ciências médicas, diziam que no sistema jurídico inquisitorial, os inquisidores estavam confundindo “melancolia” ou “velhice caduca” com bruxaria, com pacto demoníaco. Criticaram também o fato dos inquisidores levarem em conta os boatos para fundamentar a abertura de um processo.

Essas críticas levaram o rei da França, Luiz XIV, em 1682, a considerar a bruxaria uma superstição – mas manteve o sacrilégio ou profanação das coisas sagradas como um crime a ser punido com a morte.

Para os iluministas do século XVIII, que pregavam o humanismo penal, o racionalismo jurídico, era preciso que o Estado desprezasse o direito natural revelado por Deus, através das interpretações das Escrituras, realizadas pelos doutores da Igreja, ou seja: o direito canônico. Que a Igreja controlasse o seu clero, mas a sociedade civil, quem deveria controlar era o Estado, utilizando-se de um direito laico, criado pela razão, e não ditado por Deus.

Mas esta é uma outra história...

11 - Direito Medieval - Parte II: Common Law

O direito romano foi a base do direito moderno em grande parte da Europa; na Inglaterra, não.

A influência do direito romano na formação dos direitos francês, espanhol e português foi muito maior do que na do direito inglês, assim como foi maior também a influência do latim – que era a língua falada em Roma – na formação das línguas francesa, espanhola e portuguesa. Na Inglaterra, a influência direta do latim na formação da língua inglesa foi tão pequena quanto a influência do direito romano na formação do direito inglês.

O direito inglês desenvolveu-se, portanto, de forma bastante autônoma. Foi o Common Law (ou Direito comum): um direito baseado nos costumes.

Common Law é o direito desenvolvido por meio das decisões dos tribunais, e não mediante atos legislativos ou executivos. Constitui portanto um sistema de direito diferente do sistema romano, que enfatiza os atos legislativos – as leis. Nos sistemas de Common Law, o direito é criado ou aperfeiçoado pelos juízes: uma decisão a ser tomada num caso depende das decisões adotadas para casos anteriores e afeta o direito a ser aplicado a casos futuros. (Está aí a força dos costumes). Nesse sistema, quando não existe um precedente, os juízes possuem a autoridade para criar o direito, estabelecendo um precedente.

O conjunto de precedentes é chamado de Common Law e vincula as decisões futuras. Quando as partes discordam quanto ao direito aplicável, um tribunal procura uma solução dentre as decisões precedentes dos tribunais competentes. Se uma controvérsia semelhante foi resolvida no passado, o tribunal é obrigado a seguir o raciocínio usado naquela decisão anterior (princípio conhecido como stare decisis). Entretanto, se o tribunal concluir que a controvérsia em exame é diferente de todos os casos anteriores, decidirá como "assunto de primeira impressão" (matter of first impression). Posteriormente, tal decisão se tornará um precedente e vinculará os tribunais futuros com base no princípio do stare decisis.

Agora, um pouco de história:

Ao que parece, os romanos não só não impuseram de forma rigorosa o seu direito aos povos que viviam na Grã-Bretanha (como os Celtas, por exemplo), como também não impediram que a sua vida continuasse a ser normatizada pelo seu direito costumeiro.

Após o domínio romano, que terminou em 407 d.C., tribos bárbaras, principalmente os anglos-saxões, invadiram parte do território da Grã-Bretanha e o dividiram entre si, concentrando-se ao sul da antiga província romana. Não havia ainda um direito comum a toda a Bretanha. O direito era fragmentado, uma mistura de costumes antigos (celtas, anglos-saxões, etc.), muito semelhante ao que no continente nós chamamos de Direito Feudal.

O Common Law começou a se formar mesmo na Grã-Bretanha a partir de 1066, logo após a invasão dos Normandos (descendentes dos Vikings), povos que, assimilando em parte a cultura dos anglos-saxões, instituíram ali um tipo diferente de feudalismo. Lembre-se que o feudalismo, no continente europeu, era fragmentado: cada senhor feudal tinha o seu direito e o aplicava à sua maneira no seu feudo. Na Grã-Bretanha (na parte onde em breve surgiria o reino da Inglaterra), não. Isso porque o “rei” normando (líder dos invasores), após a invasão, não dividiu com os seus guerreiros a aplicação da Justiça. Os feudos que se formaram na Inglaterra após a invasão normanda não eram tão independentes da autoridade do rei como eram os feudos do continente, e o Common Law, formado a partir do registro dos costumes locais, tornou-se comum a todos os feudos, tendo como garantidor do cumprimento desses costumes aquele que era o “senhor feudal” mais poderoso do território conquistado, a quem chamaremos de rei.

Os senhores feudais administravam suas terras, cobravam impostos, mas dependiam do rei para a aplicação da Justiça, o que reduzia muito a autonomia dos feudos.

Esse direito originalmente inglês, comum a toda a Inglaterra já na Idade Média, teve um desenvolvimento também original.

O rei Henrique II (1133-1189) contribuiu muito para a formação do direito comum inglês, desenvolvendo a prática de enviar juízes de seu próprio tribunal central para ouvir as diversas controvérsias por todo o país. Seus juízes resolviam-nas de modo ad hoc, conforme a sua interpretação do que era o costume aplicável. Os juízes reais retornavam a Londres e normalmente discutiam seus casos e decisões entre si. As decisões eram registradas e arquivadas. Com o passar do tempo, surgiu a regra do stare decisis (ou do precedente), segundo a qual o juiz estava obrigado a seguir a decisão pretérita de um juiz anterior, aplicando os mesmos princípios usados por aquele magistrado quando os dois casos apresentassem fatos semelhantes. Com este sistema de precedentes, as decisões "congelavam-se" e seu conteúdo perpetuava-se, e assim o direito pré-normando de costumes locais desconexos (celtas e anglo-saxões) foi substituído por um sistema elaborado e coerente de normas que era comum por todo o reino.

Com o tempo, o sistema feudal inglês (diferente daquele que vigorava no continente) foi se transformando em um sistema centralizado e burocratizado de poder: um estado monárquico centralizado, aos moldes dos estados francês, espanhol e português.

Um dos fatos mais marcantes dessa história aconteceu em 1265, quando o rei foi obrigado pela população a criar uma assembléia constituída por representantes do clero, da nobreza feudal e da burguesia, limitando o seu poder: era o Parlamento, uma das instituições mais tradicionais e sólidas da Inglaterra. O monopólio da Justiça e o poder executivo continuaram nas mãos do rei, mas o Parlamento tinha poder de veto sobre uma série de leis e decisões administrativas provenientes do monarca, como o aumento de impostos, por exemplo. (Cabe ressaltar que, embora os costumes e precedentes judiciários – o Common Law – mantivessem posição privilegiada no direito inglês, novas leis eram publicadas, sobretudo no contexto de formação do estado burocrático inglês).

Com a criação do Parlamento, o rei legislador teve seu poder limitado; ele não podia interferir na vida social e econômica dos seus súditos de forma absoluta, sem levar em conta a opinião do Parlamento, pois o seu poder dependia, também, do Parlamento.

Mais tarde, no século XVII, o rei inglês tentou impor a sua vontade, fechando o Parlamento, e foi derrubado do poder. No final do processo revolucionário (em 1688), a Monarquia se manteve, mas o rei perdeu o seu poder legislador e de administrador da Justiça, que passou a se concentrar no Parlamento (poder legislativo) e nos Tribunais (poder judiciário). O rei perdeu também o poder executivo, que passou para o Parlamento. Desde 1688, na Inglaterra, podemos dizer que “o rei reina, mas não governa”.

No continente europeu, devido à forte influência do direito romano (direito extremamente centralizador), a evolução dos direitos nacionais francês, espanhol e português, a partir do direito romano, não permitiu que nesses reinos o rei tivesse o seu poder de legislar limitado tão cedo como na Inglaterra. Lembre-se que o objetivo central do direito romano foi centralizar o poder nas mãos do imperador, dando a ele o controle absoluto sobre o seu Império.

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e visualize, no mapa, os países que hoje seguem o sistema do Common Law. Os que estão em azul escuro são exclusivamente Common Law. Os que estão em azul claro seguem o Common Law junto com outros sistemas de direito.

Dica de filme: "A Legião Perdida"

Um filme muito bom, que ajuda a entender a presença romana na Grã-Bretanha entre os anos 120 e 140 d.C., é "A Legião Perdida" (The Eagle). Através dele podemos imaginar como deve ter sido o contato dos romanos com as tribos celtas e outros povos que viviam ali.

Sinopse: Em 140 d.C., 20 anos depois do inexplicável desaparecimento de toda a Nona Legião Hispânica nas montanhas da Escócia, o jovem centurião Marcus Aquila chega de Roma para tentar resolver o mistério e restaurar a reputação de seu pai, o comandante daquele importante batalhão. Acompanhado apenas por seu escravo bretão (de origem celta) Esca, Marcus aventura-se pelas desconhecidas montanhas da Caledônia, onde irá se defrontar com tribos selvagens, ficar em paz com a memória de seu pai e recuperar o emblema de ouro da legião perdida, a Águia.

Para assistir ao trailer do filme, CLIQUE AQUI

Em Pará de Minas, você encontrará o filme na Star Vídeo, próximo ao Banco Santander.