quarta-feira, 6 de junho de 2012

21 - O Direito no Brasil Republicano - Parte II: a República e o Povo (1889-1930)

O livro “Os Bestializados”, de José Murilo de Carvalho, tem como recorte temporal o período 1889-1930, com um enfoque especial para a primeira década do século XX; e como recorte espacial, a cidade do Rio de Janeiro, sede da República.

Dentro desses recortes temporal e espacial, o autor analisa o relacionamento entre o cidadão brasileiro e o Estado republicano.

A Monarquia de d. Pedro II tinha ficado para trás, e percebemos que, quando há uma mudança política significativa no país, há um movimento no sentido de substituir suas estruturas jurídica e legislativa, a começar pela Constituição, que é a lei fundamental da Nação e que tem como objetivo regular as relações entre governantes e governados, estabelecendo para cada um direitos e deveres. É a Constituição também que determina a forma de governo e as relações entre os poderes.

Quando o Brasil deixou de ser Monarquia (centralizadora e autoritária) e passou a ser República (federalista e democrática, pelo menos no papel), em 1889, a Constituição monárquica, a de 1824, perdeu o sentido, e foi preciso elaborar uma Constituição republicana, que foi a de 1891. Elaborou-se também um novo Código Criminal, o de 1890, para substituir o Código Criminal de 1830; e, finalmente, em 1916, foi promulgado o Código Civil, que só na República veio substituir o direito privado das Ordenações Filipinas, de 1603.

É importante lembrar que quando relacionamos mudança política com mudança nas estruturas jurídica e legislativa, não queremos dizer que durante o período monárquico não tenha havido mudanças nessas estruturas: elas ocorreram, através de reformas, não só da Constituição de 1824, que foi reformada pelo Ato Adicional de 1834, mas também do Código do Processo Criminal, que foi reformado em 1841, concentrando mais poderes nas mãos do imperador (que passou também a escolher os juizes municipais, os chefes de polícia e os promotores públicos das províncias), e das leis eleitorais (sendo a mais importante, a reforma eleitoral de 1881, que ampliou o direito de voto, mas por pouco tempo).

Mas voltemos à República:

O artigo primeiro da Constituição de 1891 diz o seguinte:

“A Nação Brasileira adota como forma de governo, sob o regime representativo, a República Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por uma união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil”.

O artigo segundo:

“Cada uma das antigas províncias formará um Estado e o antigo município neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte”:

“Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 Km², que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal.”

Parece claro que os republicanos não viam o Rio de Janeiro como a capital ideal para a República, talvez porque ela lembrasse muito o passado colonial e monárquico (o absolutismo, o despotismo, o poder da Igreja), com suas ruas estreitas, seus templos, monumentos e construções que lembravam muito o passado, e a República representava o novo, o futuro, a mudança, o moderno (a liberdade, a democracia).

O mesmo podemos dizer de Ouro Preto enquanto capital do estado republicano de Minas Gerais. Ouro Preto lembrava muito o passado e, por isso, foi construída uma nova capital, Belo Horizonte, moderna, planejada, republicana.

Se Belo Horizonte, antes mesmo de terminar o século XIX, tornou-se a nova capital de Minas Gerais (um estado que pertencia a uma União Federal republicana), o mesmo não aconteceu com a capital da União, que continuou sendo o Rio de Janeiro até que o presidente Juscelino Kubitcheck inaugurasse a nova capital do Brasil, Brasília, no início dos anos 60.

Porém, a cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, passou por reformas urbanas bem ao estilo republicano: inúmeras praças foram inauguradas, novas avenidas criadas, outras largueadas, enfim, a capital foi modernizada para acolher melhor o novo regime.

Mas, e nos quesitos Liberdade, Participação Popular, Direitos Políticos, fortemente presentes no ideário republicano? Como isso se deu na prática, na cidade do Rio de Janeiro, durante a República Velha? Finalmente houve a irrupção do povo na política? Essa é a pergunta que se coloca o José Murilo de Carvalho no início do seu livro “Os Bestializados”.

O título do livro foi tirado de uma frase do republicano Aristides Lobo, que disse que o povo assistira à proclamação da República bestializado, atônito, sem compreender o que se passava, julgando assistir talvez a uma parada militar.

Mas que povo era esse? No primeiro capítulo do livro, José Murilo de Carvalho apresenta-nos o povo do Rio de Janeiro, que assistiu à proclamação da República “bestializado”, sem empunhar o estandarte da liberdade e proclamar em brado retumbante a soberania popular.

Como vivia esse povo?

No primeiro capítulo do livro, o autor faz um estudo da população da cidade do Rio de Janeiro durante a República Velha, enfocando mais a primeira década do século XX. A conclusão a que ele chega é a de que, no geral, o povo carioca era pobre. O emprego era escasso e a população muito numerosa, devido ao grande afluxo de imigrantes, principalmente portugueses, e à presença de ex-escravos que, após a abolição foram libertados da prisão da escravidão para caírem em um outro tipo de prisão: a da pobreza, da miséria, do desemprego.

A pobreza alimentava a criminalidade, a bebida e o jogo. A falta de higiene, a insalubridade, a deficiência alimentar abriam as portas para as epidemias, principalmente de febre amarela, peste bubônica e varíola. O autor conta que o governo inglês concedia a seus diplomatas que vinham para o Brasil um adicional de insalubridade pelo risco de contraírem alguma doença na capital da República. A elite administrativa do Império e da República tentava fugir das epidemias indo para Petrópolis, onde o ar era menos pestilento.

Além de pobre, a população do Rio de Janeiro era instável, revoltosa e, no geral, não apoiava o governo republicano. No entanto, a revolta da população era essencialmente reativa. A população se revoltava porque se via atingida por alguma medida governamental específica e não para mudar o quadro republicano geral de forma que se abrissem espaços de participação política, organizada, democrática, para essa população poder expressar suas opiniões quanto ao governo da coisa pública.

O motim reativo não era o tipo de revolta que os republicanos mais idealistas esperavam de um povo numa República.

A dúvida que fica é a seguinte: será que o governo republicano dificultou a participação popular, através da política dos governadores (ou política do café com leite, como ficou mais conhecida, e pelo coronelismo, o voto de cabresto, etc.) porque ele percebeu que daquele povo não se podia esperar grande coisa em termos de participação política republicana, ou porque, desde o início, a elite temia perder o poder?

No primeiro capítulo do livro, então, o autor apresenta o povo do Rio de Janeiro para o leitor, e afirma que esse povo, além de pobre, era indisciplinado, dividido por conflitos internos, solidário apenas quando se sentia agredido no seu espaço doméstico, revoltando-se não porque a República não lhe permitia participar ativamente das tomadas de decisões, mas porque o Estado, vez ou outra, invadia as suas comunidades, interferindo no seu cotidiano.

Quando os observadores estrangeiros afirmavam que o Brasil não tinha povo político, o que eles estavam buscando era o cidadão estilo europeu, mais especificamente o cidadão francês. Só que José Murilo de Carvalho discorda da afirmação de que o povo brasileiro era apático. Ele diz que a acusação de apatia era claramente exagerada, porque o povo reagia com vigor quando se sentia atingido pelo governo. O exemplo que ele cita é o da Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro em 1904.

A Revolta da Vacina ocorreu em decorrência da política de saneamento básico e de combate às epidemias de febre amarela, peste bubônica e varíola do governo Rodrigues Alves. Assim que tomou posse, em 1902, Rodrigues Alves deu início às obras de saneamento e de reforma urbana da cidade. Para isso, ele deu poderes quase ditatoriais para o engenheiro Pereira Passos, que foi nomeado prefeito pelo presidente – não havia ainda eleições municipais –, e para o médico Oswaldo Cruz, que foi nomeado diretor do Serviço de Saúde Pública.

O trabalho de Oswaldo Cruz, primeiramente, consistiu em atacar a febre amarela, extinguindo os mosquitos e isolando os doentes nos hospitais, e a peste bubônica, exterminando ratos e pulgas, limpando e desinfectando ruas e casas. Cerca de 2.500 funcionários mata-mosquitos espalharam-se pela cidade, e para prevenir resistências dos moradores, eles eram acompanhados por soldados de polícia.

Muitas casas foram desapropriadas para demolição, donos de casas e cortiços considerados anti-higiênicos foram intimados a reformá-los ou demoli-los. Além disso, o engenheiro Pereira Passos baixou várias posturas que interferiam no cotidiano dos cariocas: proibiu cães vadios e vacas leiteiras nas ruas; mandou recolher a asilos os mendigos; proibiu a cultura de hortas e capinzais, a criação de suínos; mandou também que não se cuspisse nas ruas e dentro dos veículos, que não se urinasse fora dos mictórios, etc.

Foi nesse ambiente que teve início a luta pela implantação da vacina obrigatória contra a varíola. Os inimigos do governo diziam que a vacina era perigosa para a saúde, que podia causar convulsões, diarréias, gangrenas, otites, difteria, sífilis, epilepsia, meningite, tuberculose. Outros diziam que a vacina iria ferir a honra das famílias. Um representante das classes operárias, por exemplo, disse o seguinte, num discurso: “O trabalhador, ao voltar do trabalho, fica sem poder afirmar que a honra de sua família esteja ilesa, por haver aí penetrado desconhecido amparado pela proclamação da lei da violação do lar e da brutalização aos corpos de suas filhas e de sua esposa”.

A reação popular à lei da vacina obrigatória foi violenta. A cidade do Rio de Janeiro virou palco de uma verdadeira guerra: bondes foram queimados e virados, lampiões destruídos, tiroteios, barricadas, e no final o governo teve que interromper a vacinação. O povo venceu, mas essa vitória não foi suficiente, na perspectiva de José Murilo de Carvalho, para criar o cidadão republicano. O que o povo queria era simplesmente a interrupção da vacinação e não mudanças políticas mais profundas.

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